AS FORMAS DA NACIONALIDADE

A criação de mitos
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Desde as planícies e as montanhas do hemisfério norte até os pampas do extremo sul, os movimentos de formação das novas nações americanas tiveram em comum o envolvimento de letrados e artistas com as causas da nacionalidade. O que não deixa de fazer parte de um mais amplo movimento de reordenação da modernidade em que também a Europa se envolvia. Foi de ambos os lados do Atlântico que a ebulição social e cultural se uniu na produção das transformações que, com a Guerra de Independência dos Estados Unidos e com a Revolução Francesa, inauguraram os tempos da democracia burguesa. E, tanto nas Américas quanto no velho continente europeu, os artistas participaram ativamente da proposição das formas e das imagens da nova sociedade. Configuração especialmente embasada em dois projetos, o da promoção do esclarecimento e o da consolidação dos ideais democráticos pelo fortalecimento dos estados-nacionais.

Dois projetos que, nas sociedades americanas passaram a se revestir com o cunho de promoção do processo civilizatório e de proclamação de uma identidade embasada em um modo de ser americano que ia sendo inventado ao mesmo tempo em que era proclamado. A idéia de estarem ungidos com uma missão civilizatória, desde logo, serviu de apoio aos novos senhores das terras no enfrentamento não só com as populações indígenas, mas com grupos marginalizados e semi-independentes, como é o caso dos gaúchos do pampa argentino, vistos por Moreno e Sarmiento como mais próximos da barbárie do que da civilização promovida por Buenos Aires. Um dizer-se portador da razão e das luzes não poucas vezes banhado por cores religiosas, mesmo quando, a partir de fins do século 18, o que se mostrava claramente em jogo era a consolidação do poder civil.

Para a promoção do estado-nacional as coisas se complicavam; pois, além da imposição da vontade das elites brancas a populações de indígenas e mestiços – e mais os escravos e seus descendentes, sem falar nos desgarrados e bandoleiros –, era necessário marcar uma distância, um diferenciamento com relação às antigas metrópoles. Ou seja, uma aproximação aos territórios da barbárie, mas agora já não encarados apenas como negativos, e sim como capazes de emprestar um sabor americano às novas nações. Fosse ele um sabor norte-americano ou sul-americano, das pradarias, dos vulcões mexicanos ou do altiplano andino, das regiões tropicais e costeiras ou das mais frias regiões pampeanas. O mito que logo se mostrou como o mais adequado para agregar diferenças e antagonismos inconciliáveis foi o da unidade nacional e da lealdade à nação. Não faltaram dissensões para ameaçar essas unidades com cisões como a entre os sulistas e os yankes no hemisfério norte ou as rebeliões que pipocaram pelo Brasil. A todas, entretanto a habilidade dos líderes políticos conseguiu ultrapassar, com a ajuda, a bem da verdade, tanto da literatura quanto das artes plásticas, ambas pródigas na geração de mitos de sustentação.


John Krimmel – Celebração do quatro de julho, 1819.

Ao norte, participaram do movimento de que resultou a fundação dos Estados Unidos pensadores e letrados como Benjamin Franklin, Thomas Paine e Thomas Jefferson. Uma aproximação entre a ação política e a produção artística, especialmente a literatura, que também aconteceria não apenas nas novas repúblicas da América do Sul mas também no Império brasileiro. Inúmeros construtores das nacionalidades americanas foram não apenas pensadores articulados com o discurso moderno, mas cultores das artes; em sua imensa maioria, políticos e escritores. Em 1846, o argentino Juan María Gutierrez, referia-se aos poetas do seu tempo afirmando:

Em geral, prepararam-se para o foro, sentaram-se nas Assembléias Legislativas, representaram seus governos em países estrangeiros, presidiram-nos às vezes, e sempre pertenceram ao movimento político ou à administração de suas repúblicas.
A associação entre a política administrativa, as artes e a literatura fica particularmente evidente no Brasil, quando o rei português organiza o recebimento de uma Missão Francesa para provocar uma mudança no gosto e nos hábitos, marcados por um barroco demasiadamente clerical e demasiadamente amestiçado para os padrões da intelectualidade européia, então fascinada pelas ideais da Revolução Francesa. Seu filho, além de proclamar a independência, compôs hinos pátrios e teve ao seu lado o poeta José Bonifácio de Andrada e Silva. Mais tarde, após assumir um Império em que não faltavam problemas, Pedro II apoia-se tanto na força comandada por homens como Barroso e Caxias, quanto na arte promovida por autores que ele fez questão de trazer para junto de si, como Porto Alegre e Gonçalves de Magalhães que empreenderam uma campanha pela adoção do estilo romântico no Brasil. Não por acaso um estilo que na Europa se caracterizara tanto pela busca de uma maior abrangência de público quanto pela promoção do nacionalismo.


O mito da unidade nacional

A intimidade entre a produção de arte e a administração estatal, resultou – como não poderia deixar de ser – na promoção, tanto pela literatura quanto pelas artes plásticas, das idéias-mito que serviram à sutentação do poder central. Algo que se torna claro no momento em que José de Alencar isola da urbanidade os contextos culturais que convivem no território brasileiro, ao denominar de romance regional aquele que trata das peculiaridades que aí se desenvolvem, reservando a categoria de romance urbano somente para aquele que se refere ao que na Capital do Império acontece. Um procedimento semelhante ao adotado por Sarmiento quando atribui a Buenos Aires a missão civilizadora de antepor-se à barbárie que, segundo ele, dominava nas zonas rurais. Ou seja, ainda que por caminhos diversos, era aos mesmos fins que atendiam tanto a política imperial do brasileiro quanto a ideologia do unitarismo republicano do argentino.

A proposição da unidade sob um comando centralizado caracterizou, ao longo do século 19, grande parte da produção cultural e artística nas Américas. A promoção da nacionalidade e a preocupação com a ação educacional ou civilizadora aparece fundamentando obras literárias como as dos norte-americanos Fenimore Cooper, Longfellow e Emerson; dos argentinos Esteban Echeverría, Juan Bautista Alberdi, Juan María Gutiérrez e Domingo Faustino Sarmiento; dos chilenos José Vitorino Lastarria e Blest Gana; do mexicano Ignacio Manuel Altamirano; ou dos brasileiros Gonçalves Dias e José de Alencar.

Na pintura, do mesmo modo, é a configuração dos mitos fundadores que vai aparecer em artistas como os mexicanos José Maria Obregón e Leandro Izaguirre, os argentinos Carlos Morel, Pueyrredon e Candido Lopez, o uruguaio Juan Manuel Blanes, ou os brasileiros Pedro Américo e Victor Meirelles. O que já anteriormente, ainda no século 18, surgira na pintura de Benjamin West, para desdobrar-se, desde então, pelos trabalhos de vários outros pintores da cena norte-americana, como John Trumbull, Thomas Cole, Edward Hicks e Emanuel Gottlieb Leutze.

Torna-se comum então, tanto na produção plástica como na literária, o mesmo reviver de acontecimentos e paisagens apontados como formadores de um modo de ser entendido como tipicamente norte-americano, brasileiro, argentino, chileno e assim por diante: cenas compostas como imagens da nacionalidade pairando acima das diferenças que fervilhavam no interior de cada nação.

Foi a dimensão mítica de uma nacionalidade idealizada que José de Alencar escolheu para situar seus romances. Segundo ele próprio indica, sua pretensão era a de compor um amplo panorama do Brasil no espaço e no tempo. Não certamente o tempo do extermínio do indígena nem o do aviltamento do escravo, muito menos o espaço em que se firmavam resistências ao poder central. Mais do que ao entendimento do novo país era à sua invenção como ficção que se destinava o panorama traçado por Alencar. Uma proposição de identidade nacional em que os costumes do Rio de Janeiro surgiam como padrão, o índio surgia como herói e tipos periféricos como o gaúcho eram desqualificados como primitivos e ingênuos.


Prilidiano Pueyrredon – Junto ao Rancho, cerca de 1860.

A mesma dimensão em que se situam cenas pintadas por Juan Manuel Blanes, no Uruguai e Prilidiano Pueyrredon que, ao contrário de Alencar, elevam o gaúcho à condição de símbolo, transformando em cenas idílicas as lides nos campos.

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. . . . . . . Juan Manuel Blanes . - . Amanhecer.. e..Entardecer, 1865.

As poses amaneiradas dos gaúchos retratados por Blanes estão tão distantes da realidade sofrida do homem humilde dos campos do sul quanto a narrativa de Alencar sobre a ingenuidade e o primitivismo do gaúcho brasileiro. O que ambos ocultam é o quanto, de um e de outro lado da fronteira entre o Brasil e o Uruguai, o gaúcho se locomovia na realidade de uma cultura própria do pampa sulino, que é distinta das idealizações de que o discurso do poder – desde Montevidéu, desde Buenos Aires ou desde o Rio de Janeiro – se utiliza para promover o mito da nacionalidade unificada.


A exaltação dos heróis

A idealização da nação como pátria a ser amada e defendida acima de todos os valores apoiou-se, desde cedo, tanto na exaltação da natureza, sempre exuberante e inigualável, quanto no culto dos atos heróicos e dos vultos que passavam a ser reconhecidos e saudados como libertadores ou pais da pátria, como Bolivar, San Martin, George Washington, ou o Imperador Pedro I, que teria, com um impulsivo brado, concretizado a Independência. A admiração da Natureza na América e a tentativa de criar uma mitologia americana tornaram Longfellow um dos escritores mais populares na segunda metade do século 19. Da beleza das paisagens americanas nos falam, embora de modo bem diverso, tanto Thoureau quanto Gonçalves Dias. À exaltação romântica dos sentimentos e das paisagens do colombiano Jorge Isaacs, em Maria, corresponde a visão nostálgica com que Melville evoca a bravura do herói tragado pela terrível exuberância da natureza, em Moby Dick.


Pedro José Figueiroa – Simón Bolívar, libertador e pai da nação, 1819.

As figuras dos fundadores surgem tanto em opulentos retratos quanto em alegorias como a de um Bolivar que acolhe sob o braço a nova pátria, na pintura com que Pedro José Figueiroa comemora a libertação de Nova Granada, ou como a de um George Washington transfigurado em deus olímpico, na escultura talhada em mármore por Horatio Greenough.

Horatio Greeenough – George Washington, 1840.

Mais sutil, mas não delineado com menos pompa é o retrato, realizado por Victor Meirelles, do Imperador Pedro II envolvido por símbolos que apontam tanto para o poder das armas, uma vez que o retratado veste a farda de almirante, quanto para o poder do pensamento e da cultura, representado pelos livros e obras de arte que o cercam.


Victor Meirelles – Retrato de Dom Pedro II, 1862.

A antiga ocupação dos pintores europeus com a exaltação dos monarcas aos quais serviam transfere-se para o Novo Continente com o sentido napoleônico de tarefa de cidadãos interessados em participar da consolidação do estado-nacional. De norte a sul, são inúmeras as obras que não se contentam em apenas fixar a fisionomia dos dirigentes da pátria, mas os apresentam envolvidos em ações heróicas ou em situações de poder.


Emanuel Gottlieb Leutze - Washington cruzando o Delaware, 1851.

É para o denodo e para a bravura do líder inconteste que Leutze aponta, ao armar a cena em que George Washignton que se mantém em pé sobre a frágil e instável embarcação, em pose de destemor, tão firme e pomposa quanto a presença do pavilhão ao seu lado. Já na apresentação de Pedro II no momento da abertura da Assembléia Geral, se não encontramos semelhante atitude, não faltam a pompa e a presença afirmada do poder da figura imperial que se impõe na presença de vultos tão importantes quanto Caxias, Rio Branco, o Conde d'Eu e Tamandaré, além da princesa e da imperatriz.


Pedro Américo - D. Pedro II na Abertura da Assembléia Geral, 1872.

Uma pintura dirigida à exaltação que resultou também em um sem número de obras em que surgem tanto as figuras dos líderes nacionais, como Washington, Bolívar, San Martin, Artigas, os imperadores do Brasil, quanto as dos comandantes e suas tropas em frentes de batalha.


Juan Manuel Blanes – Revista do Rio Negro pelo General Roca, s.d.

Victor Meirelles - Batalha dos Guararapes

Proposição da bravura como exemplaridade que igualmente trouxe para a pintura o cidadão destacado por sua bravura, como na tela de John Wesley Jarvis, em que o jovem capitão Reid aparece em destemida pose sob a bandeira dos Estados Unidos que tremula ao fundo.

John Wesley Jarvis – Retrato do Capitão Samuel C. Reid, 1815.

A antiga tradição de dar a nacionalidade a forma do valor conquistado nos campos de batalha não poderia deixar de ser utilizada por nações que em meio às mais diversas lutas armadas iam definindo seus perfis.


Carlos Morel – Combate de Cavalaria, 1830.

Assim é que, ao longo do século 19, do norte ao sul do Novo Continente, os mais diversos pintores dedicaram-se à composição de cenas de batalha destinadas a atiçar o orgulho os cidadãos das nações a que serviam.


Candido Lopez - 2ª Divisão de Buenos Aires na Batalha de Tuyutí, 1885.

No sul, entretanto, junto com as imagens da Guerra do Paraguai produzidas pelos vitoriosos, como é o caso do Argentino Cândido Lopez, do uruguayo Blanes e dos brasileiros Meirelles e Pedro Américo, surgiram também gravuras produzidas pelos paraguayos em plena frente de batalha divulgadas pelo jornal de campanha El Cabichui. Trata-se de um conjunto contudente de imagens, geradas nas condições mais adversas, com a finalidade de manter o ânimo pela crítica contundente às forças da Tríplice Aliança.


Gravura - jornal El Cabichui.

Apesar, entretanto, de se imporem como notas dissonantes com relação aos trabalhos de exaltação, adotando, ao contrário da arte de exaltação que se havia generalizado, o caminho de uma crítica corrosiva aos seus poderosos inimigos, não deixam essas gravuras de se incluir no esforço de dar sustentação às nacionalidades que então se afirmavam. A diferença estava apenas no fato de que, infelizmente, surgiam como expressão de uma nação invadida e condenada ao fracasso.
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Os mitos fundacionais

Além da exaltação dos líderes e das cenas de bravura, um outro recurso foi utilizado pela produção artística, ao longo século, 19 nas Américas, como forma de propiciar a criação e a divulgação dos mitos de sustentação dos quadros nacionais que se iam consolidando. Foi a fabulação de narrativas de como as novas pátria se originaram de gestos especialmente inspirados. Idealizações do surgimento de verdadeiras genealogias que enobreceriam as novas pátrias tornando-as descedentes de momentos notáveis.


Jose María Obregón – A inspiração de Cristóvão Colombo, 1856.

A busca de raízes, entretanto, apontava para direções opostas; por um lado, a origem européia, por outro heranças mais próprias da nova terra, mais firmemente cravadas no seu chão e mais próprias para atribuir a cor local capaz de marcar a ambicionada autonomia com relação às metrópoles do Velho Mundo. Quando se trata de criar mitos, porém, tudo parece possível. Assim é que, no México, tanto uma quanto outra origem são exaltadas muitas vezes pelo mesmo autor, como é o caso de Obregón que tanto aponta para uma mexicanidade ligada às tradições pré-colombianas quanto propõe uma genealogia posta em andamento por Colombo quanto aponta para uma mexicanidade ligada às tradições pré-colombianas.


Jose María Obregón – Descobrimento do pulque, s.d.

Raízes que, no Brasil, tanto aparecem como remontando à chegada dos portugueses, de modo que a carta do escrivão da frota, Caminha ao rei de Portugal passa a ser vista como uma certidão de nascimento, quanto buscam fundamento na figura do príncipe português que resolveu transformar o Brasil em uma nova nação. É para esse duplo nascimento que apontam duas das mais famosas pinturas na iconografia da nacionalidade: a apresentação em tom romântico, embora contido, da missa rezada pelos portugueses em solo brasileiro, por Victor Meirelles, e a cena de um jovem Imperador aclamado pelos soldados e pelo povo ao proclamar, junto às águas do riacho Ipiranga, a independência da nação que ali surgia.


Pedro Américo – O Brado do Ipiranga, 1887

É também para um momento fundacional, que aponta a pintura em, que com tonalidades quentes e vibrantes, John Trumbull, mostra como desenrolando-se em um clima de calma e solenidade a cerimônia em que foi firmada a declaração que dava surgimento aos Estados Unidos como nação independente.


John Trumbull - A Declaração da Independência, em 4 de julho de 1776, fins do séc. 19.

O indianismo

A figura do indígena foi utilizada de modos diversos para a criação do mito tanto de um heroísmo primitivo que se poderia encontrar nas raízes da americanidade quanto de uma possibilidade de unidade para além das diferenças entre os que vieram da europa e os antigos habitantes do Continente. Já em fins do século 18 o índio é celebrado e elevado à categoria de personagem mítico por poetas situados em latitudes tão diversas como o Brasil de Basílio da Gama e Santa Rita Durão e a América do Norte de Philip Freneau. Sendo que aí também vamos encontrar, nessa mesma época, as relações com o indígena elevadas à condição de cena mítica, na pintura em que Benjamin West retrata William Pen negociando com os índios. Uma obra que assume tons idílicos ao modo das encenações bucólicas tão ao gosto da época na Europa.


Benjamin West – O tratado de William Pen com os índios, 1772.

Um olhar sobre o índio como um bom selvagem que embora tendo levado ao fornecimento de símbolos para a consolidação dos mitos fundacionais das nações americanas, dava, entretanto, seqüência a uma perspectiva já delineada na Europa Um entendimento do indígena como a encarnação do bom selvagem de Rousseau presente tanto em pinturas de autores europeus quanto nas tapeçarias da manufatura de Gobelin.

O índio caçador - Gobelin, 1773.

Foi mesmo nos primeiros tempos da colonização que ocorreu ao colonizador europeu a idéia de associar a figura do índio dócil e receptivo ao novo continente, como atesta uma antiga gravura, na qual vemos Vespúcio sendo recebido por uma índia que simboliza o Novo Mundo.

Vespúcio e a América - gravura em metal do século 16.

Índios receptivos ao mito da missão civilizadora desempenhada pelos europeus e prontos para se deixarem levar de bom grado pela palavra ungida pelo divino, trazida pelos novos donos da terra. É diso que fala a Carta de Pero Vaz de Caminha e é para isso que aponta uma gravura do século 18 em que vemos Vieira pregando a selvagens embevecidos.

O jesuíta Antonio Vieira pregando aos índios, 1747.

Um pouco mais adiante, na América do Norte, já após a Independência, será a vez de Fenimore Cooper retomar, nos moldes de Walter Scott, a figura do indígena como símbolo nostálgico de um passado idealizado, em O último dos moicanos. Um romance cujo sucesso e repercussão estende-se até os dias atuais e na época inspira a pintura de Thomas Cole.

Thomas Cole - Cena de o Último dos Moicanos, 1827.

Ainda nestes primeiros tempos de após a Independência, mais uma vez veremos surgir no norte a idéia da aproximação entre a cultura européia e a indígena configurada na celebração do tratado promovido por William Pen. Desta vez, em uma curiosa pintura de inspiração quaker que apresenta uma alegoria do que seria um momento de paz e harmonia abrangendo também o mundo dos animais, em uma alusão a Isaías.

Edward Hicks – O reino da paz, 1834.

No Brasil, as imagens fantasiosas tanto da graça feminina quanto do heroísmo viril, voltam a ser atribuídas ao índio, no século 19, na poesia de Gonçalves Dias, nos romances de José de Alencar e na pintura de Victor Meirelles. E mesmo Machado de Assis, o arguto crítico da sociedade carioca em fins do século 19, ainda encontra inspiração para em um de seus poemas retomar o indianismo. Obras em nas quais surgem indígenas que não apenas adotam comportamentos relacionados com as tradições culturais européias, mas apresentam surpreendentes semelhanças fisionômicas com o europeu. É com uma maneira de sentir típica da subjetividade romântica européia que Gonçalves Dias coloca diante de nós a índia que, em seu leito de folhas verdes, espera em vão pelo amado:

Não me escutas Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã, lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!



Victor Meirelles – Moema, cerca de 1863.

Não é com outros traços que Victor Meirelles evoca a figura de Moema, personagem do poema O Caramuru, de Santa Rita Durão, cujo corpo morto estirado na praia nada tem a ver com o aspecto que teria um cadáver trazido pelo mar e em que, tal como na índia de Gonçalves Dias, delineia-se a imagem de uma individualidade frágil e em abandono. Uma entrega romântica também evocada no México por Felipe Gutiérrez na pintura A Caçadora dos Andes, 1891.

Felipe Gutiérrez – A caçadora dos Andes, 1891

E tal como os americanos Benjamin West e Edward Hicks idealizam o momento fundador de um futuro Estado, embora com mais pompa e ênfase, Meirelles propõe, com sua A primeira missa no Brasil, o que seria o ato inaugural da futura Nação brasileira. Um momento marcado com a solenidade da celebração religiosa, em que tanto o mito da missão civilizadora quanto da unidade nacional encontram-se emblematicamente configurados

Victor Meirelles – A Primeira Missa no Brasil, 1860.

Já os argentinos e uruguaios, especialmente Esteban Echeverría, mas também José Hernández, apresentam os índios, nesta mesma época, como selvagens ferozes que se opõem aos valores da civilização. São atitudes completamente diversas das encontradas nos autores brasileiros aquelas com que Echeverría delineia os seres terríveis e sanguinários dos quais fogem Maria e Brian, em La Cautiva. Romance em que o uruguaio Juan Manuel Blanes busca a inspiração da pintura em que, tal como Victor Meirelles em Moema, apresenta com tons românticos a fragilidade e sofrimento encarnados em uma figura feminina. A diferença é que não se trata de umaíndia, mas de uma mulher branca raptada pelos índios. Nada, entretanto, mostra que nos campos dos países sulinos os índios fossem tão distintos dos que viviam nas regiões enfocadas pelos autores brasileiros. Mas não era, por certo, da realidade cotidiana e sim da criação de fantasias míticas que se tratava. E, aí, tanto a doçura quanto a ferocidade, por uns e por outros proclamadas têm a ver antes de tudo com a necessidade de forjar tipos capazes de, em contextos sócio-culturais distintos, servirem ao mesmo propósito de promover o mito da unidade nacional.

Juan Manuel Blanes – La Cautiva, 1881.

O fato é que, no Brasil, a não-unidade sempre se mostrou de uma forma tão flagrante que tornava especialmente difícil a localização de um personagem isento de ser identificado apenas com esta ou com aquela situação particular. O tipo unificador não poderia ter os traços de nenhuma das diversidades que passaram a ser apontadas como regionalidades. Não serviriam o bandeirante, por ser demasiadamente paulista; o sertanejo, por caracterizar apenas o nordeste e, muito menos o gaúcho que até já guerreara contra o Império. A elite mais próxima à corte também não servia por ser ainda demasiadamente portuguesa, como português fora o primeiro imperador. Nem havia como cogitar para símbolo do tipo brasileiro a figura do negro mantido como escravo. Restava somente o índio, afastado do centro imperial e sem nenhum papel na vida do país. Foi justamente por esta nenhuma significação, que o diferenciava dos outros cujas particularidades se tornavam prejudiciais, que o índio acabou por ser a escolha, inspirada também em exemplos anteriores.

Na região do Prata, as coisas aconteciam de outra maneira. Havia igualmente divisões internas, entre as quais a mais evidente era a oposição entre o campo e a cidade. Apesar disso, a concentração populacional junto aos dois centros urbanos mais importantes, Montevidéu e Buenos Aires, e a recente história dos combates travados para a formação das novas repúblicas geravam possibilidades de identificação bastante distintas daquelas com que lidavam os brasileiros interessados em promover a unidade imperial. Foi nesse contexto que o índio surgiu para os autores argentinos não como a possibilidade de nele projetar a idealidade mítica, mas, ao contrário, como negatividade ou ameaça que justificaria a aproximação e a unificação dos demais grupos. Ou seja, uma maneira de, pelo caminho inverso ao dos brasileiros, chegar à mesma promoção da unidade entre os vários grupos sociais, com a exclusão do índio, é claro. Um exclusão que não aparece no Brasil justamente porque já se havia efetivado, deixando ao indígena não mais que o papel de um símbolo e de uma evocação.
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autor:   josé luiz do amaral
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